A esta geração não será dado nenhum sinal, disse o profeta de Nazaré [Lc. 11.29]. Por isso, entendemos que o COVID19 não é o sinal do fim que muitos almejam, mas pode ser observado como o sinal que faltava para o tardio fim do século XX. A expectativa da humanidade na virada do século, com a tradicional contagem dos anos e décadas foi frustrada, nada de excepcional no céu e na terra. Tão somente vira-se o calendário em meio a celebrações corriqueiras para alguns e o adiamento do maranata para outros.
De fato, o relógio do tempo não nos pertence. Foi ajustado pela mão escondida, concepção do poder invisível da antiga filosofia. De repente… Wuhu, Wuhan a bandeira do século começa a ser queimada em dezembro de 2019 e vira o ano tomando conta do mundo, mas ainda não é o fim! Contudo, pode ser a oportunidade da síntese desejada entre o breve e o longo, nas percepções de Eric Hobsbawm e Giovanni Arrighi.
Estaria o fim do século na queda de um sistema político ou na crise de um sistema econômico? Embora seja uma temática instigante, relevante e atualizada, haja visto as contribuições já oferecidas, não há aqui o descortinar desse desafio. Porém, serviu para dar continuidade ao mesmo esforço, por um outro caminho, com a mesma finalidade, de encontrar uma lápide que melhor se adeque para expressar “aqui jaz mais um duradouro século da humanidade”, mas ainda não é o fim.
É arriscado questionar se a humanidade do “presente século”, expressão paulina que indica a contemporaneidade [Rm. 12.2], continua a dedicar todo seu tempo de vida na construção da casa terrena? É bem provável que esse ritual promova o sobressalto comum aos humanos acerca do fim, razão pela qual não cessa a busca incessante por sinais.
Considerando que o medo de ser surpreendido pelo fim da existência é recorrente na humanidade ao longo dos séculos, sejam eles curtos ou compridos, podemos afirmar que estamos a escrever mais um capítulo dessa história. A pandemia COVID 19 tem causado a expectativa do fim e o próprio fim para milhares de milhares no mundo. No Brasil, nosso espaço imediato, o cenário, os números e as reações apontam para a cruel percepção: o castelo da vida foi construído sobre a areia, muitos queridos fecharam os olhos para sempre! Nada mais é possível, nem mesmo um dos avanços do Século XX, a redescoberta da estética do fúnebre para promoção da afetividade em situações extremadas e não demonstração do medo da finitude.
A forma e o volume das partidas revelaram, mais uma vez, a estrutura superficial e frágil da casa terrena. Resta aos que continuam nos escombros em inevitável clima de dor, velar as perdas insubstituíveis que dão face e identidade aos números, revelam aqueles para quem o mundo parou. Como em toda tragédia humana, chega a fase da superação, é preciso não sucumbir à solidão. Nas estações imaginárias durante a despedida negada a muitos, tem sido natural o otimismo: seja na crise ou na queda há quem acredite que tudo vai passar, e há sempre uma saída, há sempre alternativa para os que ficam. E como se fosse um último suspiro, cria-se um empolgante mutirão, vamos nos reinventar, somos capazes e disto sairemos melhores!
Acreditarmos nas pessoas é o melhor que temos a fazer, “pregava” o missionário da educação Anísio Teixeira. Eis aí um significativo caminho que de fato pode marcar a morte de uma ilusão. É possível unir as mãos para construir casas que subsistam aos ventos contrários e nada lhe derrube até seu último suspiro sobre a terra. É possível enxugar as lágrimas e enfrentar a agonia que assola o mundo em mais uma pandemia. Não se trata de uma mágica que sai da cartola de alguns é, antes, um cuidar de si a partir do reencontro consigo mesmo. É uma “luta renhida”, como a cunhada por Gonçalves Dias, uma labuta que não se prostra na morte que morre, mas renasce para a vida que não acaba mais. Uma casa que será para sempre lembrada, porque será eterna. Será essa a lápide ideal para celebrar o fim do século dos avanços?
Ainda há tempo para cuidar da alimentação do interior, o potencial de cada pessoa; uma força que subsiste ao que é limitado e por razões em parte desconhecidas, foi abandonada na arte de viver. É preciso despertar sem medo a adormecida dimensão espiritual da humanidade. Que avanço há em se contentar com a interrupção da vida? Não faz sentido algum reinventar-se hoje para morrer amanhã [Ec. 4. 7-8].
Esse cuidar, como qualquer outro, exige aprendizado. É urgente uma epistemologia que oriente o caminho para repensar a relação manente e imanente, do humano com o divino e um outro agir dos humanos entre si. A tarefa de clarificar essa experiência humana é urgente para marcar acentuadamente sua presença na história da civilização, proporcionando o cliname que abra caminhos nas rotas da racionalidade e da individualização, as eurecas do século XX.
A dimensão da espiritualidade humana torna-se relevante quando alcança sua fase mais bela e permite romper e não se limitar aos benefícios mensuráveis da vida religiosa dirigida. O avançar da humanidade, sob esse olhar, é marcar o fim de uma era não mais desejada. É criar as condições para identificar as armadilhas que se escondem na força dos dogmas como se oráculo fossem, com a finalidade de reduzir a experiência da vida às limitações da existência, desestabilizando com as sombras das impossibilidades.
Trata-se da abordagem de uma experiência profunda daquele mesmo profeta, desacreditado entre os seus, diante de um dos arautos que o chamou de fazedor de milagres, provavelmente a motivação para aquele significativo encontro noturno. O Nazareno, servidor da causa a tempo e fora de tempo, debruça-se a explicar que a velha estrutura precisava da força do vento para movimentar o mundo. Diante do espanto de seu gabaritado interlocutor, não o subestima e conclui: a metamorfose humana é possível. No dia seguinte, mantem sua agenda: ensinar no caminho a metanoia necessária. Deixa como resultado daquele encontro o maior legado, a certeza de que o cultivo da espiritualidade das criaturas desenvolve a liberdade que vence o medo de não viver.
É preciso ter coragem para largar as asas sobrepostas e viver no sustento das asas de dentro ao sabor “do vento que sopra onde quer… não sabe de onde ele vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito” [João 3]. São os que vivem alforriados e planam atentos sobre os abismos para não serem atraídos novamente pelos sinais encantadores da falsa liberdade que subsistirá por um tempo na prática do “questionador deste mundo”.
Estão postos há muito, os saberes que mudam o tempo, as datas e os séculos por meio de pessoas simples, porém fortalecidas pela nova natureza resistente às intempéries do caminho. A relevância da espiritualidade para o ser humano tem sido observada em outros campos do conhecimento, fato que contribui com a ideia de estarmos diante do redescobrir de uma experiência antiga que põe fim às eras marcadas pela finitude. Assim, não há mais necessidade da expectação generalizada por sinais para antever o que não faz mais sentido.
Um outro olhar que vislumbra o início do século dos séculos, está marcado pela tarefa humana de reencantamento com o mundo, retoma a pedagogia de Hugo Assmann ao apontar o novo papel das pessoas no mundo e a função da escola na sociedade, ou seja, o compromisso com a espiritualidade humana, visando à qualidade da vida no tempo que chamamos de antessala do jardim. Uma nova realidade que encontra ecos nas preocupações da OMS (e não só hoje, em tempos de pandemia) com a saúde da humanidade. Tomemos o Relatório da sua Assembleia Geral de maio de 1984 e por conseguinte a ratificação ao incluir no Programa Saúde para todos no ano 2000, que a “dimensão espiritual tem um papel importante na motivação das pessoas em todos os aspectos de sua vida. Afirma que essa dimensão não somente estimula atitudes saudáveis, mas também deve ser considerada como um fator que define o que seja saúde”. Notadamente, uma proposta desconsiderada pelo império do pensamento forte, os dominadores do resistente século.
A duração desse modo de ser, de pensar e de agir aprofundou suas raízes e não se enfrenta apenas com palavras, teses e discursos. Também não se resolve com ações violentas – prática na qual são especialistas e da qual são fomentadores. Entende-se que essa rejeição à espiritualidade humana se deve à carência de uma hermenêutica da vida que possibilite a compreensão desse mundo novo, habitado por pessoas modificadas pela leveza do Espírito.
Esse foi o tema naquele encontro dos mundos, não sobrou brecha para ingenuidades. O paroleiro afirmou ao Mestre, não se faz um novo mundo sem a coragem suficiente para amputar a velha natureza [Mt. 5.29], que tem por finalidade corromper a vida para prolongar os séculos dos negócios escusos, dos enganos entre os caminhantes, estimulando desacordos e confundindo as linguagens. A teoria sugerida para esse projeto de vida nova é conhecer histórias de sujeitos que retornam da beira do abismo, onde muitos ficaram, numa cruel experiência com a finitude dos sonhos. São narrativas de caminhos de volta: dos pés sangrando em trilhas de sofrimentos se chega ao kerigma, a proclamação para o fim do pensamento forte construído no altar da razão humana.
Na aurora diária do novo século que se espera, será retomada a lógica do profeta da terra fraca, de onde não sairia nada bom. É neste curto diálogo que aparece o desafio para a humanidade, “vem e vê” [Jo. 1.46] a formação da nova criatura oferecida no monte. Uma aula de espiritualidade passo a passo. Um outro reino é uma construção, jamais uma posse lavrada por mãos humanas, mas é possível perceber a gradual mudança da consciência. No lugar do espírito altivo e forte, um espírito pobre; onde só os fracos choram, chore; onde os louros são dos bravos, seja manso; onde reina a injustiça, não faça o mesmo, esper por justiça; onde domina a intolerância e a intransigência, use de misericórdia; na violência, não mate, seja pacificador; se sua fé ao mover montanhas incomodar, preserve-se na leveza do espírito; no mundo da maldade, não se deixe sucumbir, mantenha-se integro!
As chaves da nova casa são entregues aos que resistem, se soar utopia para alguns esperaremos, mas caberá definir o que é utópico, não como algo inalcançável. Nenhum passo sem observar a sabedoria do Nazareno que, em muito, excede a racionalidade deste século, a qual para muitos é loucura.